”A tempera de uma alma é dimensionada na razão direta do teor de poesia que ela encerra” (Horácio Quiroga)

sábado, 31 de outubro de 2015

Estrada noturna

Em noites de breu,
Quando as nuvens baixas
Abaixo da lua, das estrelas,
Tornam o negrume medonho,
As estradas parecem sem fim
E sem curvas.
É isto que percebemos,
Somente uma reta,
(No plano cartesiano)
Equação de primeiro grau:
ax+by+c=0.

E o silêncio?
Denso, repleto de frequências
Que nos fazem sentir,
Desconfiados, os sons
Irrompidos de nós mesmos,
Não da matéria, muda,
Mas do extra-físico,
Pura energia,
Reverberada na negridão
Da noite alta.

O voo do bacurau
Na faina noturna da caça
Ou o pio agudo
Da coruja-branca
(a rasga-mortalha),
Que na torre escura
Se fere ou se acasala,
Nos deixam pálidos
Na noite negra,
De longas retas
E silêncio profundo.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Esperança x Realização

Ah, esperança!
quanto és cantada,
quanto és aconselhada,
quanto és conforto e salvação.

Tens lá tuas valências
quando o desespero açoita,
quando o espírito carece de forças,
quando o corpo já não suporta seu peso.

Mas aqueles que de ti
se socorrem, acomodados,
sempre passivos em sua inércia,
condenam-se a padecer na madracice.

É fato que: só na esperança,
tudo permanece sempre inalterado;
a vida passa e a esperança apenas muda de grau.

Para realizar o que desejamos
não podemos prescindir do trabalho,
não podemos dormir nos torpores do verde.

Temos que buscar dentro de nós,
com afinco, as energias físicas e mentais
capazes de suscitar um sábio e proveitoso viver.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Um Livro

Meu primeiro livro
Que comprei sozinho,
Espontaneamente,
Foi um livro de Dostoiévski,
Justamente o derradeiro
– Os irmãos Karamazov –
Ivan, o escritor,
Alieksiêi, o padre,
Dimitri, o militar
E Smerdjakov, o coitado.

“Na verdade, na verdade vos digo
Que, se o grão de trigo,
Caindo na terra, não morrer,
Fica ele só; mas se morrer,
Dá muito fruto.”

Na lápide e no livro
O evangelho de João
Criando a vida na morte,
Como Fiódor criava
Da morte, do crime,
Da religião, da culpa
E da promiscuidade,
Seus densos personagens,
Espelho manifesto
Da sordidez humana.

“Leve três e pague dois,
É só por hoje esta oferta.
Paga agora só um “galo”
E sai com três livros dos bons.
Pode escolher!”

Na voz cantada do vendedor,
Pachorrenta e nasalada,
O mundo a meus pés.
Eu queria levar três
(Dois Machados e um Monteiro)
Mas só dispunha, sobrando,
Fora o do lotação,
De uma “de dez”.
Na pechinha com o fanho
Levei o russo, já roto.

“Jogou dinheiro fora”,
Me disse o chofer (de quepe),
“O livro se desmancha
Antes que chegue em casa”,
Profetizou, sorrindo.

Quase acertou.
Em casa chegou,
Mas gasto, sem capa.
As folhas puídas,
Comidas dia e noite
Por traças famintas,
Tinham cor de ferrugem
E espedaçavam frágeis,
No folhear rude
Do leitor inábill

Mas sobreviveu ao novato.
“Se este livro for perdido,
E por acaso for achado,
Para ser bem conhecido,
Leva meu nome assinado.” 

sábado, 24 de outubro de 2015

Poetas

Eu já li timidamente alguns poetas;
reconheço que poucos, mas li.
Uns abandonei logo, entediado,
ainda na primeira estrofe;
outros, muito me agradaram, 
estimulavam-me a leitura.

Li um pouco de Fernando Pessoa, 
amei Álvaro de Campos com Tabacaria:
"Quando quis tirar a máscara,
estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
já tinha envelhecido."

Encantaram-me, aqueles versos.
li alguns sonetos Florbela Espanca;
encantou-me a moça de Vila Viçosa.
Gonçalves Dias me fascinou;
visitei Tomás Antônio Gonzaga e
com Camões vou passo a passo.

Mas eu era todo encantamento,
pois vivia entre muitos poetas:
seis ao todo, para o meu fascínio,
que emprestavam seus nomes
               às humildes ruas do meu bairro;
ruas encantadas, de saibro batido.

Raul de Leone com Sei de Tudo,
Júlio Dinis com Similia Similibus,
Rodolfo Teófilo com História de um Átomo,
Bernardino Lopes com Berço,
José Albano com Esparsa
               e Batista Cepelos com Ecce Homo.

Esses, para mim queridos poetas,
(Os que gostei e também os outros),
permitiram-me ter um diferente olhar
               sobre as incertezas da vida futura,
deram-me sensibilidade e sutileza;
enfim, mostraram-me a poesia.

sábado, 17 de outubro de 2015

Alegoria sobre uma rainha nua

Um oficial da guarda armada real
Enfezado e brusco, convocou o rei:
Que venha até mim sem detença, já!
O velho e gordo rei, ladino, cismou:
O que pretendia aquele bruto oficial,
Assim tão besta, soberbo, sedicioso?
 
Ordenou então o rei: Prendam-no!
Um general foi mandado às pressas
Para cumprir, incontinenti, a missão.
No pátio, se defrontaram, solenes,
General e oficial, ambos sonolentos.
Fitaram-se, mudos, por algum tempo.

Então, conversa vai, conversa vem,
Quem se danou, no final, foi o rei, 
Que morreu assustado e sem coroa. 
A viúva rainha saiu a cavalo, nua,
Para cumprir o nojo, indispensável.
Mas casou-se na sexta noite do luto.

O novo marido era um velho lobo,
O líder de uma alcateia iracunda
Com quatrocentos cânis decididos.
A rainha fogosa queixou-se ao lobaz, 
Canídeo voluptuoso e insaciável:
Queria vingança, lavar a honra real.

A única batalha, pelo que se sabe,
Deu-se na via láctea, ao fim de junho.
Vitoriosos e derrotados, viraram pó.
A rainha, nua, talvez tenha sido salva.
Especula-se que tenha ido para a lua
E, de lá, orientado uma ação da NASA.

Segundo alguns demônios selênicos,
Ela falava diretamente com o Aldrin,
Pois do Armstrong ela não gostava.
Dizem que ela ergueu dezoito castelos;
Todos fantásticos, feitos apenas de pó,
No centro do Oceano da Tranqüilidade.

Alguns, desses demônios, segredam
Que a dita rainha era muito perversa;
Que como aliada dos Estados Unidos
Teve importante e efetiva participação
Em alguns golpes na América do Sul.
Recebeu pelo trabalho, treze bananas.

Hoje ela vive, taciturna, em Cubatão.
Fumegando um pó sujo o tempo todo,
Tornando os dias nebulosos e tristes.
Recebeu um salvo conduto da FIESP
E pode fumegar imundice a vontade.
Em março, deve vir à Angra dos Reis.





sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Para Antoine Lavoisier

A pétala caiu, quase a flutuar.
De certo um acidente, coitada,
Em uma travessura na corola.

O vento leve e morno da manhã
Levou-a para além do caule fino.
Em seguida trouxe-a de volta.

Então, passados alguns minutos,
Vieram duas formigas operárias
E levaram-na, operantes e calmas.

Cumpriu assim sua missão, a pétala,
Completando seu ciclo na natureza.
No início, enlevo; no fim, alimento.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Perene

Ontem, ainda era cedo.
Hoje, já é tarde.
Amanhã será o presente,
O tempo certo,
O momento exato.

Então tudo fluirá:
Serenamente,
Somente energia,
Pulsante, condutora,
E o tempo será eterno.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Velhaco

O cínico, há quem afirme,
Anda tranquilo pelas ruas
Assoviando uma musiquinha
Despretensiosa no tempo,
Mas que, dolente, acalanta
Sua alma vil de canalha.

E há ainda quem diga
Que o tal, trapaceia no amor,
Mas persigna-se contrito
Ao passar pela Penha
E nem contém o riso ladino
Que lhe dá a identidade.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Desatino

E se não fosse a dor?
E se não fosse o amor?
Um ser incolor?
Furtacor?

Eu mergulharia no nimbo
              (o pincho inverso)
              e beberia a sede dos fósseis
              (celacanto persistente).

E se não fosse o barato?
E se não fosse o retrato?
Um ser abstrato?

Extrato?